Neutralidade ou Cumplicidade? Os direitos LGBT durante a Presidência Portuguesa no Conselho da União Europeia
As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
De
acordo com o Diário de Notícias, lançado no passado
dia 22 de junho, treze países da União Europeia instaram a Comissão Europeia a
"utilizar todos os instrumentos à sua disposição para garantir o pleno
respeito do direito europeu", perante uma lei húngara considerada
"discriminatória para as pessoas LGBT". Aprovada uma semana anterior,
o diploma "introduz uma proibição da representação e da promoção
de uma identidade de género diferente do sexo à nascença, da mudança de sexo e
da homossexualidade junto de pessoas com menos de 18 anos”, num contexto em
que a comunidade LGBT está cada vez mais amordaçada pela política
neoconservadora do governo de Viktor Órban.
Na carta, os Estados-Membros expressavam
“profunda preocupação quanto à adoção, pelo parlamento húngaro, de legislação
discriminatória em relação às pessoas LGBTQI (lésbicas, gays, bissexuais,
transgénero, queer e intersexuais) e que viola o direito à liberdade de
expressão sob o pretexto de proteger as crianças”. Tal
foi iniciativa da Bélgica e reuniu as assinaturas de mais 12 países -
Países Baixos, Luxemburgo, França, Alemanha, Irlanda, Espanha, Dinamarca,
Finlândia, Suécia, Estónia, Letónia e Lituânia. Mas Portugal não assinou o
documento. De acordo com a Secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana
Paula Zacarias, Portugal não assinou porque, como país na presidência do
Conselho da União Europeia, tem um dever de neutralidade.
Existem duas dimensões que importa
apurar: uma, a do efetivo “dever”, como o próprio Conselho da UE salienta, de mediar
imparcialmente, o de garantir o bom desenrolar dos processos legislativos e a
cooperação entre os Estados-membros; e outra, a dimensão da moralidade, o de
compreender se a formalidade burocrática foi um instrumento para desviar a
dimensão política.
A primeira, como afirma Catherine Moury,
investigadora em assuntos da União Europeia no Instituto Português de Relações
Internacionais, ao Polígrafo SIC/Europa, “sim, a presidência deve agir como um
intermediário neutro e honesto e, nesse sentido, deve chegar a uma posição
comum entre os restantes Estados-membros, em matérias de negociação
legislativa. No entanto, e tendo em conta que a minha
linha de raciocínio se coaduna com a opinião da investigadora, neste
caso concreto – direitos das pessoas LGBT – pode-se argumentar (e eu concordo)
que não há espaço para uma posição de neutralidade, já que não se trata de uma
negociação”. Para o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos
Silva, esta neutralidade não incide em matéria normativa, mas antes em matéria
institucional. Esta tese de charneira é essencial para destrinçar direitos LGBT
da esfera dos Diretos Humanos, sem assim ofender as Partes envolvidas no
processo. Mas se os Estados-Membros que exercem a presidência permanecem
livres, juridicamente, de se pronunciar sobre qualquer tema, sem obrigação
jurídica de silêncio, o que dizer sobre a (in)ação do Governo português na
Presidência do Conselho da União Europeia. Não tem poderes para atuar? Quais
são as suas prioridades?
Na Carta
dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Artigo 11º estabelece que
“qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão”, sendo que “este direito
compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir
informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes
políticos”. Portugal, à semelhança de outros Estados, ao assumir a presidência
do Conselho da União Europeia, passa a emparelhar a sua condição enquanto nação
independente com a noção de identidade europeia. Numa situação destas, a ação
da presidência tem que ser necessariamente coincidente com os valores da União
Europeia. Mais ainda, se não a acanhada posição do governo Português face à
posição privilegiada e favorável que qualquer outra Nação à frente da
Presidência do Conselho da União Europeia dispõe para agir, nem sempre assim o
foi, já que ao longo dos seis meses que a ocupou,
absteve-se de muitas votações em assuntos tão
relevantes quanto este (houve muitos votos nos quais participou). A
invocação de uma formalidade burocrática para responder a um problema político
é, como retorquiu Marisa Matias, mais resultado de “excesso de zelo do que de
dever formal”.
Um dos principais fatores inibidores de
uma leitura crítica, mas simultaneamente solidária, com a comunidade LGBT no
geral, e a húngara, em particular, resulta da diferenciação proposta entre
dever e moral, institucional e normativo; e, embora seja necessário começar
pela desconstrução desta diferenciação, importa compreender a razão pela qual
assim o é. Tal passa, obviamente, pela
transferência de foco das questões de fundo sobre o impacto das nossas decisões
no plano diário destas pessoas, para uma vertente legal, falsificável e por
isso muito menos sensível de explicar. Resta fazer uma leitura sobre o
significado da posição do Governo português.
O papel de Portugal em matéria de Direitos Humanos não pode ser ambíguo. A presidência do Conselho da União Europeia traz uma responsabilidade acrescida para os Estados que a ocupam, uma que deve estar sempre do lado da defesa dos Direitos Humanos e contra aqueles que os atentam. Portugal seria neutro, em plena UE, se estivesse perante legislação que destruísse a humanidade das mulheres perante a população? Que discriminasse relações inter-raciais ou proibisse atos de fé? Gente de carne e osso é afetada por esta “neutralidade”. Direitos Humanos não são revogáveis. Se Portugal não queria subscrever a carta, teria sido mais frontal dizê-lo.
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