ENTREVISTA – DESIGUALDADES NO PODER LOCAL
REALIZAÇÃO: 20/08
(entrevista realizada por Zoom por João Martins)
Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais, 3ºAno - NOVA FCSH
As opiniões expostas nesta entrevista vinculam exclusivamente os intervenientes.
Maria
Antónia Pires de Almeida é investigadora do CIES – Centro de Investigação e
Estudos de Sociologia – do ISCTE-IUL e professora convidada nesta última
instituição. Licenciou-se em História pela NOVA-FCSH, é mestre em História Social
Contemporânea e doutorada em História Moderna e Contemporânea, além de possuir
dois pós-doutoramentos em Ciência Política, com foco no poder local. As suas
áreas de especialidade podem ser resumidas em: transições políticas, poder
local, história do centro e da periferia, da medicina e da tecnologia, e
biografias. Conta também com onze livros e mais de cem capítulos e artigos
científicos publicados, tendo compilado e gerindo igualmente uma base de dados
biográficos com mais de 6000 entradas, das quais se destacam 3102 Presidentes
de Câmara do passado e do presente.
- - -
JM: É um prazer poder recebê-la, Sr.ª
Prof.ª, tal como o foi contactar com a sua pesquisa na área que hoje iremos
abordar: as desigualdades do poder local em Portugal. Com a sua permissão, irei
colocar-lhe algumas questões baseadas maioritariamente no seu livro O Poder
Local do Estado Novo à Democracia: Presidentes de Câmara e Governadores Civis,
1936-2012, e na pesquisa relacionada que subsequentemente desenvolveu e
publicou noutros artigos científicos, os quais citarei no rodapé desta
entrevista1. Espero conseguir abarcar os pontos essenciais da sua
investigação, escutar as conclusões que dela obteve e suscitar o interesse dos
e das leitoras no tema e na sua obra.
Avanço
então para a primeira pergunta: Considerando a transição da ditadura para a
democracia (1974) e a situação vivida desde aí, que alterações, mais ou menos
profundas, se registam ao nível dos detentores do poder local e da participação
das populações?
Prof.ª: Em
primeiro lugar, fico muito contente que tenha gostado do trabalho e que o tenha
lido. Quanto às grandes alterações, começamos pelo facto de os Presidentes de
Câmara passarem a ser eleitos quando antes eram nomeados. Depois, eu considero
que na revolução portuguesa, na transição toda daquele período, muito do
processo foi conduzido de cima para baixo. O próprio dia da revolução foi feito
por decreto, isto é, o governo e todos os ministros e deputados foram demitidos
por decreto. Nas Câmaras Municipais, é claro que também houve uma direção
superior para se formarem comissões administrativas, mas foi um palco onde as
pessoas se propuseram espontaneamente, com vontade de participar na
administração dos seus concelhos.
Enquanto que ao nível do governo central, os executivos
foram formados pelos militares, a nível local as pessoas participaram em listas
para as comissões administrativas. Houve uma espontaneidade grande, tanto que grupos
sócio-profissionais que nunca tinham participado nem na administração pública
nem no poder tomaram parte nessas comissões administrativas [FIG. 1].
Desde logo, pessoas com baixa escolaridade, porque anteriormente quem era
nomeado necessariamente teria de ser ou licenciado ou proprietário, ou parte de
uma elite local forte. No litoral, apareceram pescadores, domésticas,
operários, que se misturavam na mesma comissão administrativa com advogados,
economistas, ... Portanto, houve realmente um alargamento no âmbito
sócio-profissional. E quando houve as eleições, em 1976, e surgiram os
primeiros eleitos, manteve-se a grande abrangência, portanto essa foi talvez a
parte mais marcante: a abertura do poder local a grupos que nunca tinham
participado. A nível de idades – é outra componente interessante –, apareceram pessoas
mais jovens.
Há ainda a introdução dos partidos, obviamente, os quais se formaram durante o Período Revolucionário Em Curso (PREC) – só o PCP e o PS já existiam. Portanto, foi um período de aprendizagem do que é viver em democracia e de quem nos representa, que foi feita utilizando a mediação dos partidos. Foi um período de explicar às pessoas que, para votarem nos seus representantes, tinham que o fazer através de um partido – foi um período rico em esclarecimentos, que viu os vários partidos a andar pelo país a recrutar novos membros para se candidatarem.
Quanto aos munícipes, passaram a ser eleitores. As
pessoas já podiam votar antes, mas estavam muito limitadas pelo facto de terem
de saber ler ou escrever. Ora, numa população com níveis de analfabetismo
enormes, a abertura da lei eleitoral a toda a gente, independentemente das
habilitações, permitiu aumentar o universo de eleitores. Mesmo as próprias
mulheres, antes de 1968 só podiam votar se fossem chefes de família, viúvas, ou
habilitadas acima do ensino secundário. A partir de 1968, já tinham igualdade
de oportunidades em relação ao voto desde que soubessem ler e escrever. Claro
está que, com as taxas de analfabetismo muito altas, acabavam por não
participar. A primeira vez que o fizeram, nas eleições para a Constituinte (25
de abril de 1975), participaram em força – a abstenção em geral foi de apenas
8,3%, o que é explicativo da vontade de participação cívica da população nesse
momento da vida política do país. Foi uma adesão fortíssima ao início do
processo democrático em Portugal. Ao invés da atualidade, em que não é raro a
abstenção ultrapassar os 50%.
Curiosamente, nas primeiras Autárquicas, também em ‘76,
a abstenção foi de 35%. A única explicação que posso dar é que, apesar da
grande motivação em participar nas comissões administrativas ao nível local, a
vontade de votar não foi tão importante, talvez também pelo facto de já ter
havido dois atos eleitorais (Legislativas e Presidenciais) nesse ano, o que
pode ter cansado as pessoas. De qualquer forma, a abstenção era baixa e a
motivação e vontade de participar eram altíssimas. Ao contrário de agora, em
que me pergunto – Que democracia é esta que temos, onde apenas metade da
população vota...?” –, o que me parece um problema gravíssimo a que os
responsáveis políticos deveriam votar grande atenção.
JM: Este tema que refere – a abstenção
– decerto será central na conferência que o NECPRI planeia realizar em outubro
sobre o poder local, onde a democracia participativa e representativa fazem
parte do menu de debate. Olhando agora para a segunda questão, a Sr.ª Prof.ª
identificou a “relação entre o presidente eleito e a composição social e
demográfica do respetivo eleitorado” 3 como uma novidade da
democracia. É evidente, portanto, que se operou uma substituição de elites,
mas pode falar-se de uma substituição de desigualdades? Ou trocou-se apenas um grupo
quase homogéneo, maioritariamente composto por homens com alguma idade,
qualificados e sócio-economicamente privilegiados, por outro?
Prof.ª:
Vamos a ver, num primeiro período houve realmente essa diversificação
sócio-profissional e novos grupos surgiram. Neste momento, o grupo está um
bocado... cristalizado [FIG. 2]! Mantêm-se os “dinossauros”, que querem
voltar e estão a candidatar-se de novo, apesar da legislação que limitou os
mandatos para os impedir de permanecerem por mais de três. Parece ter havido
outra vez uma cristalização, mas de novas elites, com outro tipo de profissões,
geralmente mais ligadas aos serviços, que também tendem a ser cada vez mais qualificadas.
Por outro lado, a população portuguesa também já tem uma taxa de licenciaturas
muito mais elevada e a questão do analfabetismo não se coloca, por isso há que
olhar para outras dimensões. Desde logo, as mulheres continuam ausentes, apesar
da lei da paridade – continuam a não ser eleitas e, principalmente, a nem
sequer ser colocadas nas listas em posições elegíveis.
FIG. 2 – Cristalização Sócio-Profissional dos/as
Autarcas 4 |
Os critérios de manutenção no poder também estão muito diferentes. Agora importam os serviços, a realização de obras, a capacidade de atrair fundos europeus, ... No Estado Novo, a nomeação fruía simplesmente de “lá estarem”, terem alguma especialização e serem fiéis ao regime. Hoje, a reeleição liga-se mais à capacidade de “apresentar trabalho” em áreas que as pessoas aprovem e mais precisem, como infraestruturas (rotundas, estradas, estádios, etc.), centros de dia ou apoio domiciliário para as zonas envelhecidas, ... Portanto, pode falar-se de um novo grupo que já lá está há muitos anos e que se mantêm lá por “apresentar serviço” visível. As grandes obras já estão todas feitas, por isso viram-se mais para o apoio às populações e as questões da qualidade de vida ou de criação de emprego.
JM: Concluo que assim se confirma,
inequivocamente, uma substituição de uma elite por outra. Ora, para acabar as
perguntas gerais: Tomando uma visão geral dos anos de democracia, que
fatores têm “atrasado” ou impedido o combate às desigualdades que se mantêm,
como por exemplo a disparidade entre homens e mulheres?
Prof.ª: Na questão do género, há que olhar para a
formação das listas, que são feitas pelos representantes partidários locais. Os
partidos ainda estão muito fortes a nível local e têm pessoas antigas que resistem
à introdução de novas. Quando colocam as mulheres nas listas, põem-nas em
terceiro lugar, cumprindo a lei da paridade, mas contribuindo para uns meros
10% de autarcas mulheres eleitas em 2017 [FIG. 3]. Há várias outras
explicações, como o facto de as mulheres não estarem tão disponíveis – foi isso
que o líder do PSD evocou quando disse que não encontrava mulheres para
preencher as listas. Contudo, essas justificações não são bem aceites pelos
académicos, pois há barreiras muito mais fortes para as mulheres que de facto
querem participar.
Especialmente nos concelhos do interior, parece não
haver tanta vontade de colocar mulheres nos primeiros lugares elegíveis. Há uma
questão de proximidade nos meios pequenos, fechados, onde é muito mais difícil
uma mulher penetrar nos espaços de sociabilidade, porque não é bem aceite nem
se sente tão bem. Por exemplo, na zona da Guarda, onde há muito poucas mulheres
eleitas, o grupo de sociabilidade do partido mais votado inclui uma caçada e
uma “almoçarada” depois da caçada e a lista é feita numa dessas reuniões
sociais em que a mulher não participa. Há também várias reuniões que são
prolongadas até tarde e que se tornam inacessíveis às mulheres que têm
compromissos familiares porque são cuidadoras principais.
E depois, também há a questão de as próprias mulheres
votarem nos partidos que já lá estão. Em geral, nas eleições Autárquicas, as
pessoas votam muito em quem já lá está ou mantêm uma fidelidade ao partido.
Qualquer coisa de novo tem muito mais dificuldade em entrar no sistema, como prova
a desigualdade de género muito mais gritante nos meios locais do que na
Assembleia da República, onde já se atingiu a paridade, ou no Parlamento
Europeu. Aí os partidos preocupam-se mais em dar uma boa imagem, são mais
visíveis e ficam bem na fotografia. A nível local, não se sente tanto essa
necessidade.
Mas eu continuo a achar que há outra barreira, uma
barreira demográfica e de idade, pois a maior abstenção pertence aos jovens,
que tendem a ser mais abertos à inovação de ideias, à participação feminina e
de grupos de eleitores que trazem projetos diferentes dos partidos. Como os
jovens estão muito desmotivados, é muito mais difícil eleger gente nova. Isto é
uma suposição, não há confirmação. Mas creio que seria um fator renovador a
nível de género e ideias. Há aqui um problema de educação e participação cívica
que deveria ser abordado e estimulado nas escolas. O sistema só poderá mudar
quando os jovens participarem mais, porque sabemos que quem mais vota são as
pessoas mais velhas e essas acabam por votar em quem sempre votaram. Os jovens
urbanos, universitários, especialmente os que estudam Ciência Política, é claro
que votam – se esses não estiverem motivados, quem é que estará?! Mas na
maioria das outras áreas, infelizmente, há um grande desinteresse.
JM: Aproveito para convidar, então, à
participação dos jovens e restantes leitores nas Autárquicas que se avizinham, de
modo a quebrar a inércia e a desigualdade de que nos fala a Sr.ª Prof.ª. Aprofundando
a questão da desigualdade de género, como tem evoluído a proporção de homens e
mulheres no poder local? Porque não se verifica uma evolução mais acentuada, à
semelhança da Assembleia da República?
Prof.ª: Eu tenho essa informação compilada numa série de quadros que posso disponibilizar [FIG. 3, 4]. Mas basicamente, há partidos que tiveram mais cuidado e colocaram mulheres em lugares elegíveis, por exemplo o PS. O Bloco de Esquerda sempre seguiu a regra de 50/50, mesmo antes da lei da paridade. Há outros partidos que não tiveram esse cuidado, mas que por uma questão de visibilidade e de imagem pública, investiram na Assembleia da República. Isto foi conseguido um bocado “à força”, porque a lei da paridade obrigou, mas já havia alguma preocupação. No poder local, nem tanto, pelas razões que apontei na pergunta anterior e porque as Autárquicas são consideradas eleições menos importantes (mesmo não o sendo) e não há tanto investimento na imagem do partido a nível local. Em consequência, a representatividade das mulheres tem sido baixíssima desde o início.
FIG. 3 – Desigualdade de Género no Poder Local (Presidentes de Câmara eleitos em Portugal
1976-2017) 5 |
FIG. 4 – Mulheres no Poder Local vs. Central 6
JM: Por falar neles, que conclusões tem tirado a Sr.ª Prof.ª quanto ao papel dos aparelhos e organizações partidários, a quem chamou “uma escola para aprendizagem da Democracia a nível local”7? São catalisadores de mudança e inovação, tornam as suas listas e promessas mais inclusivas ou, pelo contrário, surgem como um entrave à superação de desigualdades? E, por outro lado, de que forma os Grupos de Cidadãos Eleitores (independentes) se apresentam como uma alternativa real aos partidos?
Prof.ª: É claro que no início foram mecanismos de
inovação, pois introduziram pessoas novas (esquecendo as mulheres, é verdade).
Só que depois, cristalizaram, com pessoas que ficaram lá “para sempre”.
Passaram de fator de inovação para fator de estagnação, completamente. E daí
ter havido a consciência do poder central de que era necessária uma lei que
impedisse a permanência de certas pessoas, passando a haver um limite de três
mandatos.
Neste momento, parece-me que os partidos são um entrave
à inovação, também explicando a introdução dos Grupos de Cidadãos Eleitores
(GCE) (independentes) que, em teoria, era muito importante. Infelizmente, na
prática, eles não foram assim tão inovadores, como verifiquei no meu trabalho
sobre o tema. Em princípio, os GCE iam trazer pessoas novas com ideias novas,
desligadas dos partidos, que iriam renovar o sistema. Afinal, o que aconteceu
foi que esses grupos foram constituídos por dissidentes partidários, que já
traziam as partes boas e más e muitos dos vícios dos partidos.
Mas isso tem a ver com o próprio funcionamento dos GCE
e a sua apresentação: têm muita dificuldade em apresentar-se a eleições porque
os partidos já lá estão, as pessoas já os conhecem e é muito mais difícil para
um grupo independente dar-se a conhecer. Na parte económica, não dispõem do
apoio e estrutura dos partidos, e já isso é uma limitação muito grande para divulgar
a sua mensagem. E depois, há que ver a própria mensagem. As pessoas já conhecem
a ideologia e a mensagem dos partidos, mas é muito difícil conhecerem a
ideologia e mensagem do independente, que pode ter ideias novas mas mais
difíceis de mostrar e de passar. Por fim, há o tal conservadorismo – as pessoas
estão habituadas a votar em partidos porque foi assim a sua educação
democrática. Mesmo os GCE, que poderiam vir a ser algo de inovador, acabaram
por se tornar um fenómeno de reprodução do que já existia... Claro que há
exceções. Alguns GCE foram inovadores e trouxeram gente nova – mas a maioria
tem sido, até agora, composta por dissidentes partidários e pessoas que já lá
estavam, que trazem uma bagagem forte e pouca inovação.
Voltando às dificuldades das mulheres em concorrer, se
sentissem as barreiras dos partidos, poderiam pensar em participar num GCE, mas
enfrentam dois desafios ainda maiores, além de ser mulher: mostrar que o seu
GCE é inovador, diferente; e fazê-lo não tendo um partido a financiar por trás,
dificultando a transmissão dessa mensagem. Portanto, há enormes barreiras à
inovação, apesar da boa intenção das leis da paridade e da permissão de
candidaturas independentes. Na prática, está a ser muito difícil concretizar o
seu carácter inovador.
JM: Já que a Sr.ª Prof.ª tocou no
assunto, aproveito para lançar a seguinte pergunta: Quanto à Lei n.º 46/2005,
que desde 2013 limitou a três os mandatos autárquicos, que mudanças se
observaram, sobretudo etárias, mas também socioprofissionais?
Prof.ª: Houve casos de renovação verdadeira, mas foram
muito limitados. Sim, houve uma renovação etária, mas os novos eleitos já eram
vice-presidentes, vereadores, etc. há muitos anos e, portanto, já faziam parte
da máquina autárquica. Não houve muito inovação, como tinha havido em ’75 e
’76, de todo – aí foi quase 100% de gente nova (salvo 6 casos isolados de
continuidade). Nesta nova “revolução”, como se pretendia que fosse, mantiveram-se
pessoas e grupos sócio-económicos. Algumas até estão a tentar voltar, agora, os
tais “dinossauros” [FIG. 5]. Iremos ver se nestas eleições têm sucesso,
o que depende dos eleitores, claro. Se os jovens votassem, eventualmente
prefeririam gente diferente. Não sabemos, porque como não votam, não há maneira
de o provar, mas em princípio estariam mais abertos a pessoas de outras origens
e com outras ideias.
FIG. 5 – Longevidade no Poder Local 8 |
Prof.ª: Isto é algo que acontecia antes, no Estado
Novo – haver falta de gente qualificada a nível local, então tinha de vir gente
de fora. Registam-se muitos casos de engenheiros que foram colocados em
trabalho nalgum lado e depois eram nomeados Presidentes de Câmara, tal como
muitos professores. Havia também falta de gente interessada em exercer o cargo,
que não era remunerado e só dava trabalho, pelo que não era assim tão
apetecível. Neste momento, e no restante período democrático, também houve
muitos casos de pessoas que saíram do concelho para ir fazer a sua vida
profissional e que depois se reformaram, voltaram à sua autarquia e se
candidataram a Presidente de Câmara ou de Junta de Freguesia. Também continuam
a existir pessoas que são colocadas no interior – por exemplo, médicos ou
professores –, que movem a sua vida para o concelho e decidem concorrer, e são
eleitos.
Eu não vejo isso como algo negativo. É importante que
as pessoas se empenhem e tentem participar, mostra interesse no sítio onde se
está a viver. Há outros que realmente só vão para lá exercer o cargo – Basílio
Horta em Sintra, ou Santana Lopes na Figueira da Foz, para citar alguns. Pode
parecer um bocado fora de contexto, mas pelos vistos as pessoas apreciam o
trabalho desenvolvido e reelegem-nos. De
facto, os partidos colocam algumas pessoas estratégicas em pontos-chave, mas
parece-me que é um fenómeno das cidades do litoral. De qualquer forma, são uma
minoria e não permitem tirar grandes conclusões. E há que ver que uma pessoa
candidatar-se também revela vontade de fazer algo e geralmente há boas
intenções e vontade de participar. Residir no concelho é um mínimo, porém, para
fazer parte da vida local, social e económica, e perceber o que se passa lá. É
um critério importante: ter alguma ligação ao concelho.
JM: Ao
escutá-la, surgiu-me uma pergunta que não estava planeada: Sente que há uma
identificação das pessoas com o poder local, apesar de não ser o nível mais
mediático ou de que se fala mais, pelo facto de ser o mais próximo delas? Há
uma perceção de que podem chegar, participar e comunicar mais facilmente com
este nível de poder?
Prof.ª: Sim, claro. Há 308 Câmaras Municipais em
Portugal e a maior parte nunca aparece nas notícias, mas são compostas de
pessoas locais que tentam melhorar a sua terra e estão a fazer bastante
trabalho, e bom, na medida do possível. Infelizmente, são os casos maus e de
corrupção que chegam com maior facilidade e frequência à atenção do público,
mas são uma minoria. Nos 308 municípios, há uma larga maioria de gente com boas
intenções e que quer melhorar o seu concelho. Desde logo, disponibilizam-se a
participar no processo, o que já acho um excelente indicador, muito melhor do
que não se interessar e não fazer nada.
JM: Entramos, então, na penúltima pergunta:
Como se enquadra o fenómeno da corrupção nas desigualdades entre autarcas? Isto
é, de que forma se relaciona com qualificações, género, idade, longevidade no
cargo, afiliação partidária? É pertinente considerar a variável “fundos
comunitários” neste campo de estudo?
Prof.ª: Primeiro,
gostaria de deixar claro que eu não sou especialista em corrupção, mas não me parece
que esses sejam fatores por demais relevantes. Penso que se deve olhar para as
características éticas e morais de cada pessoa, mais do que para esses traços
de perfil. Algo interessante que verifiquei é que as mulheres apresentam
qualificações médias mais elevadas do que os homens, mas não diferem muito nos
comportamentos, inclusive a nível da corrupção. Infelizmente, as mulheres têm
tantos processos em tribunal como os homens.
Quanto a qualificações, não vejo uma elite com
habilitações mais elevadas como um elemento negativo. A governação depende mais
da auscultação das populações e da vontade de implementar medidas e projetos,
de preferência considerando o bem-estar dos munícipes acima das ambições e
ganhos pessoais. A equação mais importante quando se é Presidente de Câmara é
ponderar quanto um equipamento ou projeto vai beneficiar os cidadãos do
concelho, e até que ponto devem ser auscultados ou mesmo chamados a participar
na Assembleia Municipal para ouvir quais são os seus problemas e necessidades. Os
casos negativos, que depois aparecem a público, são uma minoria, embora existam
situações em que de facto os detentores do poder local se preocupam mais
consigo e com o seu grupo de interesses e não dão tanta atenção aos movimentos
populares que se organizam para uma causa.
Olhemos para o Gerês, onde em dois municípios afetados
pelos projetos de minas de lítio, um autarca é contra e o outro é a favor. Até
que ponto vão ligar ao movimento cívico local, que já existe, na medida em que
o governo central tem uma posição de insistência? Teremos de ver... Por vezes
as pessoas participam e ninguém lhes liga nenhuma e os processos avançam
independentemente da oposição popular. No fundo, a questão recai sobre as
características éticas e morais de cada pessoa e menos sobre os seus traços
sócio-profissionais, demográficos e afins.
Em matéria de fundos comunitários, é evidente que houve
um aproveitamento e casos de má aplicação – é claro que há rotundas a mais em
Portugal. Ora tudo isso também se relaciona com a participação cívica dos
próprios eleitores. O cidadão tem o direito de questionar todas as ações suspeitas,
e é possível participar nas Assembleias Municipais e colocar questões, ou fazer
protestos – mas as pessoas não utilizam estes mecanismos. A corrupção vai
passando e muita gente não age. Mesmo a denúncia é muito rara, tal como o
envolvimento das autoridades policiais. Há uma baixíssima participação cívica,
que é já de si lamentável (não obstante um recrudescimento nas atividades de
alguns movimentos populares locais). E há o pior de tudo, que é votar nas pessoas
mesmo quando a corrupção é conhecida, ou mesmo pública. O caso Isaltino Morais
é o limite dessa situação – alguém que já esteve preso e que continua a ser
reeleito com o voto popular. E mais, o concelho de Oeiras não é povoado por uma
maioria de pessoas com baixas qualificações ou rendimentos – bem pelo contrário.
Todos os critérios de que tinha falado quando me fez a pergunta perdem valor
perante situações destas... Na altura da reeleição, as pessoas tinham
oportunidade de afirmar: “Eu não aceito estes comportamentos”. Mas, pelos
vistos, aceitam. De qualquer forma, deveria colocar esta questão a um
especialista.
JM: É
interessante ter relatado esta situação, pois relaciona-se bem com a última
questão: Na sua perspetiva, a sociedade civil tem consciência das
desigualdades que assolam o poder local e interessa-se por adereçá-las? Há um
interesse em participar e melhorar o nível de poder que mais próximo se
encontra das portuguesas e portugueses?
Prof.ª: Infelizmente, predomina a inércia e não sei
até que ponto as pessoas têm consciência dos seus próprios direitos de protesto
e participação. Deveriam ter, e continuo a pensar que a escola também não está
a cumprir o seu dever de educar alunos e alunas para a participação cívica. Não
obstante, mesmo quando sabem dos seus
direitos, muitas pessoas não os põem em prática. Afinal, basta olhar para a
enorme abstenção. Não votando e não praticando outro tipo de ações cívicas, a
maioria das pessoas está, na prática, a perder os seus direitos. Perdem a consciência
de que alterar a realidade está nas suas mãos. Estão desmotivadas porque sentem
que as mudanças são muito difíceis e estariam a ir contra poderes muito fortes
e instituídos. É pena ter-se esvaído a vontade de participação que se verificou
no princípio da nossa democracia, porque os cidadãos podem sempre agir e tentar
mudar.
Pelo contrário, predomina a desmotivação, como são
exemplo os jovens. Mas aí gostava de reforçar o papel das escolas, pois existe
uma disciplina de Ciência Política que apenas é oferecida em certos currículos
aos alunos que selecionam a área de Humanidades. Parece-me mal, pois não se
justifica que um jovem saia do 12.º ano sem saber distinguir eleições
Autárquicas de Legislativas. Os pais teriam uma obrigação nessa formação mas,
se não a cumprem – muito provavelmente porque também estão desmotivados a nível
político –, deveria ser a escola a introduzir uma disciplina que explicasse às
pessoas pelo menos os seus direitos e a sua posição no regime democrático.
Aprender o básico sobre a Constituição e a organização do nosso sistema
político é tão importante como todas as outras disciplinas, e não percebo como
pode um país funcionar se os seus habitantes não conhecem as suas instituições,
o que se reflete em impactos na democracia aos quais assistimos correntemente.
JM: E assim terminamos, numa nota um
pouco negativa. Assim, permita-me lançar um voto de esperança numa geração mais
interessada, capaz de fazer bom uso dos seus direitos e de recolher a
informação que não obteve da escola noutras fontes autónomas, como a própria
Constituição, a obra da Sr.ª Prof.ª Maria Antónia Pires de Almeida, o blog do
NECPRI ou mesmo as redes sociais. Agradeço, de novo, por ter aceitado o nosso
convite e por esta conversa.
Prof.ª: Ora essa, espero que continuem motivados e a
motivar outros colegas para que isto melhore!
1 bibliografia consultada
na preparação da entrevista:
Almeida, M. A. P. (2013),
O Poder Local do Estado Novo à Democracia: Presidentes de Câmara e
Governadores Civis, 1936-2012, Lisboa, Leya.
Almeida, M. A. P.
(2018), “Políticas públicas em territórios desiguais”, Mátria Digital, n. 6, pp. 905-937.
Almeida, M. A. P.
(2019a), “As mulheres no poder local em Portugal”, Ana Paula Pires,
Fátima Mariano, Ivo Veiga (coords.), Mulheres
e Eleições, Coimbra, Edições Almedina, pp. 195-235.
Almeida, M. A. P. (2019b), “Innovations in the
Portuguese local government: independent lists and citizen participation”,
Conference Crisis and Renewal of
Democracy. Portugal in Comparative Perspective,
2008-2019, Observatório da
Democracia e da Representação Política, ISCTE – Instituto Universitário de
Lisboa, 28 de novembro.
Almeida, M. A. P.
(2020), “Representação
das mulheres nas câmaras municipais portuguesas: práticas e programas
políticos”, oradora convidada ao workshop A
mulher como agente de transformação local, ISEG, Universidade de Lisboa, 22
de janeiro.
2/3/4 Almeida, M. A. P. (2013)
5/6 Almeida, M. A. P. (2019a)
7/8 Almeida, M. A. P. (2013)
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