Encarceramento: A Ilusão da Correção e a Realidade da Silenciação


 Encarceramento: A Ilusão da Correção e a Realidade da Silenciação


Desde o seu aparecimento, que o encarceramento tem sido uma ferramenta para silenciar

vozes contrárias. Podemos definir este fenômeno como uma repressão política e social

onde o Estado ou outras organizações de poder utilizam a prisão para neutralizar indivíduos

ou grupos dissidentes que desafiam a ordem estabelecida. Usando estratégias para

emudecer críticas, limitar a influência de ideologias contrárias ao status quo e desarticular

movimentos que buscam transformar as estruturas sociais e políticas vigentes, o sistema

penal não apenas renega a liberdade física dessas vozes, como também tenta deslegitimar

idéias contestatórias.

Segundo Foucault, a reforma do sistema penal trouxe a ideia de que era possível corrigir

comportamentos desviantes e transformar os prisioneiros em cidadãos úteis e obedientes -

o Estado conseguiria regular os indivíduos. Contudo, essa ideia é ilusória: o

encarceramento tem sido uma ferramenta para silenciar vozes contrárias, expressando-se

como uma repressão política e social onde organizações de poder utilizam a prisão para

neutralizar indivíduos ou grupos dissidentes que desafiam a ordem estabelecida -

renegando a liberdade física dessas vozes e tentando deslegitimar ideias contestatórias.

É sabido que nos regimes autoritários, o encarceramento de vozes dissidentes é uma

prática aberta e sistemática. As vozes contestatórias são frequentemente presas de forma

explícita por se oporem às ideias do regime e o Estado não se preocupa em prestar

justificações formais e robustas, sendo muitos os processos sumários ou inexistentes. Nos

regimes autocráticos do tipo totalitário, quando o terror se intensifica, instaura um

verdadeiro sistema de terror, através do qual o Estado procura obter um controlo total sobre

os seus cidadãos.

No entanto, o encarceramento de dissidentes também acontece em regimes democráticos,

embora de forma mais subtil. Apesar de as democracias serem fundadas em princípios de

direitos humanos e liberdades civis, estas utilizam o sistema judicial para silenciar

opositores, mascarando a repressão sob o manto da legalidade. O caso de Julian Assange,

criador do Wikileaks, é um exemplo claro disso.

No ano de 2006, a Wikileaks surge no âmbito de criar um espaço de colaboração para

denunciar abusos de poder no mundo. Através desta plataforma, Assange divulgou

documentos, relatórios e vídeos confidenciais da administração americana, muitos deles

fornecidos por Chelsea Manning, ex-militar do exército americano. Entre esses materiais,

destaca-se o vídeo Collateral Murder, onde militares americanos matam a tiro 10 civis e 2

jornalistas da Reuters, enquanto comentam entre si jocosamente. Ao expor crimes de

guerra que os Estados Unidos pretendiam ocultar da história, Assange tornou-se uma

ameaça e, por isso, foi acusado de violar 17 artigos da Lei de Espionagem de 1917.

Em 2010, Assange foi acusado de violar 2 mulheres pelo tribunal sueco, embora mais tarde

surgissem alegações de que a acusação era falsa. Pressionado, deixou a Suécia e

refugiou-se no Reino Unido. Em Londres, continuou a ser perseguido e acabou por procurar

asilo na embaixada do Equador, onde viveu por mais de sete anos. No entanto, em 2019,

após a troca de presidente no Equador, Lenin Moreno cedeu às pressões de Washington e

revogou o asilo de Assange. No dia 11 de abril desse ano, a polícia londrina prendeu

Assange e levou-o para a prisão de Belmarsh.

Segundo Nils Melzer, relator especial da ONU, Assange esteve sujeito a condições

análogas à tortura, durante os cinco anos e dois meses em que esteve preso. Além disso,

Melzer constatou violação de leis e manipulação de provas, por parte da Suécia, Equador e

Reino Unido, com o objetivo de facilitar a extradição de Assange para os Estados Unidos,

onde seria obrigado a cumprir pena de prisão perpétua ou mesmo pena de morte.

A história chega ao seu desfecho apenas a 25 de junho de 2024, quando, como resultado

de um acordo com o Departamento de Justiça dos EUA, Assange se declara culpado da

acusação mais leve contra si. É condenado a 62 meses de prisão, mas, por já os ter

cumprido em Belmarsh, vê-se finalmente livre deste pesadelo.

O caso de Assange exemplifica como as democracias também podem silenciar dissidentes.

A primeira característica evidente é o uso do sistema judicial para incriminar opositores com

acusações criminais, como fraude, espionagem ou ameaças à segurança nacional. A Lei de

Espionagem de 1917, criada no contexto da Primeira Guerra Mundial, é um exemplo de

uma lei ampla usada para esse propósito.

Uma outra característica evidente neste caso foi a perseguição através de investigações

prolongadas, processos judiciais seletivos ou campanhas de difamação, antes do seu

encarceramento. Numa entrevista a Nils Melzer, este relata que o testemunho de uma

mulher acerca de Assange foi alterado pela polícia de Estocolmo, resultando numa

acusação de estupro que durante 9 anos foi sendo publicitada pelo Estado e media suecos.

Além disso, este explicou que por várias vezes Assange se apresentou às autoridades para

se defender das acusações, sendo estas sempre bloqueadas.

Por fim, o recurso a prisões temporárias ou preventivas tem-se tornado uma prática cada

vez mais comum para limitar a ação de críticos, num tempo em que as guerras provocam

movimentos e manifestações contrárias por todo o mundo. De facto, no relatório Pouco

protegido e demasiado restringido: O estado do direito de manifestação em 21 países da

Europa, da Amnistia Internacional, é identificada uma tendência de adoção de leis

opressivas em toda a Europa, destacando ainda “o uso de força excessiva e desnecessária,

as detenções e ações judiciais arbitrárias, as restrições indevidas ou discriminatórias, bem

como a utilização progressiva de tecnologias de vigilância invasivas, que resultam num

retrocesso sistemático do direito de manifestação”.  


Bibliografia 


Martins, Antonio. 2024. «Assange: a história oculta», 25 de junho de 2024.

https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/assange-a-historia-oculta/.

«Pouco protegido e demasiado restringido: O estado do direito de manifestação em 21

países da Europa». s.d. Amnistia Internacional. Acedido a 17 de setembro de 2024.

https://www.amnistia.pt/wp-content/uploads/2024/07/Pouco-Protegido-e-Demasiado-

Restringido_Sumario-Executivo_ptFINAL.pdf.

«Relator da ONU denuncia tortura contra Assange». 2020, 6 de fevereiro de 2020.

https://outraspalavras.net/outrasmidias/relator-da-onu-denuncia-tortura-contra-assange/.

WikiLeaks: Collateral Murder (Iraq, 2007). 2008. https://youtu.be/HfvFpT-

iypw?si=eTKYXOUz4BDjj4l8.

S.d. Acedido a 17 de setembro de 2024.

https://fundos.museudoaljube.pt/resultado.aspx?ns=1102000&todosRegistos=true&refazPes

quisa=sim&modo=album&museu=5&c=tribunaisPlenarios&lang=PO&IPR=2230&order=181

&by=asc&pageIndex=1#div_objecto_selecionado.

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