Dia Internacional da Luta contra a Homofobia e Transfobia
Retrato de Avanços e Retrocessos
Francis Salema e Guilherme Machado
As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
Graças aos esforços de ativistas de todo o mundo, que dedicam as suas vidas à luta pelos direitos das pessoas LGBTQ+, a sociedade tem avançado no sentido de normalizar orientações sexuais não-hetero e a existência de homens e mulheres transgénero. Em Portugal, o trabalho conjunto de várias organizações ativistas, académicos e profissionais de saúde permitiu que, hoje em dia, o casamento homossexual seja legal, a discriminação esteja regulada juridicamente e tenhamos uma lei de autodeterminação de género que facilita significativamente o processo de afirmação social para pessoas trans que se identificam como homem ou mulher. Para efetivamente conseguirmos lutar contra a homofobia e a transfobia, é ainda necessário uma rede de apoio mais densa que assegure apoio médico, habitação e segurança a pessoas LGBTQ+ (es jovens trans, em especial, estão mais sujeitos a ficarem sem abrigo); formação de profissionais em assuntos trans; facilitação do processo de transição; mudança de práticas médicas antiquadas e inadequadas.
Menos avanços, no entanto, têm sido feitos no sentido de incluir as pessoas não-binárias na sociedade - o que acontece por não se conformarem com a binariedade do género vigente na cultura ocidental. A dificuldade está na desconstrução de mitos eugénicos e colonialistas que continuam a ser aceites como verdadeiros: a realidade é que os dois géneros construídos pela cultura ocidental não têm base científica ou biológica, são construções sociais que almejam dividir a população em duas fações opostas, com papéis opostos e complementares na economia capitalista - às mulheres é atribuído o papel de cuidadoras e aos homens o papel de cidadãos ativos. Para mais, são noções fictícias que beneficiam sistematicamente quem nasce com genitais masculinos. Estas duas identidades fabricadas - homem e mulher - têm também como objetivo a criação de dois mercados muito lucrativos e intrinsecamente diferentes, um baseado no ideal da feminilidade e outro no ideal da masculinidade. Tal é visível na irracional divisão entre produtos orientados para mulheres e para homens, cuja separação perpetua as normas de género e incentiva ao consumo. A população não-binária não se enquadra nesta cultura opressiva e dicotómica, e, por isso, é puxada para as margens.
A minha experiência enquanto transgénero não-binário é marcada por um constante sentimento de existir nas franjas da sociedade, para além do que é o imaginário cultural corrente; de ser sistematicamente prejudicado e julgado por algo que não posso mudar em mim; de não ter a minha identidade reconhecida por nenhum sistema operacional da sociedade, como o médico, legal, educacional, de ter, continuamente, de continuamente educar, explicar e debater a minha existência, até com membros da comunidade LGBTQ+. Tudo isto faz parte do stress minoritário que as pessoas não-binárias sofrem ao viver num sistema que lhes é inerentemente opressivo, stress que pode ser agravado se forem afetadas por outros sistemas interseccionais de opressão, como o racismo ou a pobreza. Num mundo em que ser homem ou mulher é a norma, lutar pelo reconhecimento e afirmação da comunidade não-binária é um ato revolucionário. Acredito veementemente que a minha comunidade e seus aliades são a vanguarda atual da luta pela libertação LGBTQ+.
Para garantirmos que as próximas gerações respeitarão a comunidade e identidade não-binária, é necessário ensinarmos nas escolas o respeito pela igualdade de género. Assim, as crianças aprenderão a ver as pessoas à sua volta primeiro como pessoas e depois como homens, mulheres, não-bináries. Essa mudança na maneira como percepcionamos cada indivíduo é crucial para a completa aceitação da heterogeneidade que verdadeiramente se verifica numa sociedade, e para que ocorra a verdadeira libertação de todes nós. A redução de pessoas ao seu género ou orientação sexual é desumanizante e é o que efetivamente ocorre em instâncias de transfobia e homofobia: a categorização de identidades e características que não se conformam com a binariedade do género ou a heterossexualidade obrigatória como “forma da norma” e não como ocorrências naturais é, em si, um processo de alienação e opressão. Para combater este sistema operativo de discriminação, temos de alterar a nossa educação e cultura para que se torne igualitária e humanista.
Numa sociedade que tem por base a opressão, a prospeção da libertação de dogmas antigos é confrontada com a luta pela permanência estática das instituições e tradições que influenciam as nossas vivências sociais. Movimentos conservadores, aliados do capitalismo e caracterizados pela masculinidade tóxica e apelos à homogeneização , opõem-se completamente a conhecimentos novos que refutem as suas concepções do que a sociedade deve ser. A direita internacional criou o termo “ideologia de género” para encapsular tudo o que receiam mais: a aceitação da diversidade sexual e de género. À medida que o uso deste termo fictício se vai alastrando através de linhas partidárias e a extrema-direita vai crescendo em influência, vemos a homofobia e a transfobia voltarem em força aos debates políticos. Acompanham-nas tentativas de boicote de legislação que tem como objetivo melhorar as vidas de pessoas LGBTQ+, em particular trans e não-bináries, como o despacho para as escolas sobre identidade de género, atacado pelo PSD e CDS. A nível internacional, a reação de direita baseada em pseudomoralismos e falsa ciência, propagada pelas redes sociais, já está a ter consequências nas vidas de pessoas trans. Por exemplo, em alguns estados nos Estados Unidos da América, tem sido introduzida legislação contra a participação de mulheres trans em desportos de competição. Foi citada nestas propostas de lei uma “vantagem biológica” que, efetivamente, não existe. No essencial, é uma tentativa por parte da direita de excluir pessoas trans de espaços que devem ser igualitários e públicos, coerente com a desumanização que já foi mencionada.
Neste Dia Internacional da Luta contra a Homofobia e Transfobia, é importante refletir sobre as maiores ameaças e oposições que a comunidade LGBTQ+ enfrenta. Verifica-se que, nos tempos que correm, movimentos de direita impedem que a sociedade acompanhe o que já se sabe há décadas: o “sexo biológico” e a identidade de género são espectros. A ação de esconder esta verdade e prejudicar a educação é caracteristicamente fascista. Lutar contra a contestação previsível e danosa de direita é o dever de todes es que apoiam a comunidade LGBTQ+, pois ser complacente com a injustiça é sinónimo de ser cúmplice da mesma. O caminho para lutar por um futuro melhor para a comunidade LGBTQ+ está na educação e mudança do atual paradigma cultural, uma luta difícil que será certamente contestada, e que precisa do apoio de todes es que se interessarem por um mundo mais livre da opressão. Por isso, incentivo quem estiver a ler este texto e todes es aliades da comunidade LGBTQ+ a que se familiarizem com organizações ativistas em Portugal que estão a trabalhar neste sentido, desde coletivos transfeministas a grupos que lutam pelos direitos da comunidade LGBTQ+; a que ampliem as vozes de ativistas pertencentes a grupos minoritários; a que se eduquem em literatura queer e frequentem espaços de ativismo e discussão, como protestos e eventos de celebração do PRIDE no junho que se avizinha. A organização e luta popular é o único caminho possível para a libertação: juntes, conseguiremos uma sociedade melhor para a comunidade LGBTQ.
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