O QUE A PALAVRA TEM A DIZER
Atravessamos tempos conturbados, nesta era em que a visão é o mais frequentado dos sentidos e a palavra começa a perder o valor que outrora teve. Para assinalar este Dia Europeu das Línguas, gostava de destacar o que é comum a todos os idiomas e constitui o propósito da sua existência: a palavra. Cem alfabetos e respetivas gramáticas, milhares de dialetos e expressões idiomáticas, literaturas infindas e erros de tradução, formam um universo à imagem do Universo - vastíssimo e em eterna expansão - um sistema complexo, mas impressionante, totalmente dedicado aos átomos que o compõem: as palavras. Estas são para a consciência humana o que a roda é para a ciência, um ponto inicial de invenção. E hoje atravessam tempos conturbados, em que começam a perder o estatuto que outrora tiveram. Mas não só de defeitos se reveste o futuro...
A palavra é a base da linguagem, portanto, a base da comunicação, da interação, do entendimento. Não houve sociedades, instituições, verdadeira cultura, enquanto não se pode explicá-las por palavras, montadas em frases que suscitaram as ideias que fizeram brotar os discursos que deram início às revoluções. Uma das primeiras civilizações letradas foram os Egípcios, célebres pelos seus hieróglifos, testemunhos mais recuados duma forma intemporal de olhar a palavra: como um símbolo.
Apesar de já não escrevermos como os Egípcios, é natural depararmo-nos com um termo escrito e interpretar-mo-lo como uma imagem. Tomemos a palavra “religião”. Boa parte das pessoas pensará em celebrações coloridas, dizeres ou cânticos habituais, ideias de vida eterna, provavelmente ligadas ao culto que professam ou com que estão mais habituados a conviver. Outros, porém, poderão pensar em escândalos, violência, superstição e um historial conturbado. Pode ser que alguém pense nos dois lados. O certo é que ninguém ficará sem imaginar nada, e mais certo ainda é acabarmos de presenciar o desvirtuar de uma palavra que não designa nem crenças, nem desconfianças específicas, elementos afetos somente à pessoa que os pensa. “Religião” não é a missa, não é o atentado à bomba, não é o céu ou o inferno ou o nirvana, não é a Inquisição, não é a sacerdotisa, não são os antepassados. Estas são outras palavras, que valem por si, com significados distintos de “religião”, por sua vez definível como a prática espiritual associada a um credo, seja ele qual for.
Para aclarar esta ideia, invoquemos nova palavra: “socialismo”. Para certas mentes, este é um termo comum, associado a conquistas de classe, melhorias nas condições de vida, justiça equitativa e noções similares. Para outros, é uma imagem de repressão, controlo estatal, falhanço histórico e assim em diante. Mais uma vez, “socialismo” não é nenhuma destas coisas, mas antes uma ideologia socioeconómica objetiva, que não representa as propostas e os meios humanos até hoje utilizados para a implementar. Enfim, o objetivo destas afirmações não é argumentar a favor da imparcialidade frente a todas as palavras, ou apagar as noções, sejam elas positivas ou negativas, que carregam atrás. Pelo contrário, esta seria uma reflexão inutilmente complexa e abstrata se não servisse para realçar um defeito intemporal do ser humano e as suas consequências cada vez mais graves. Falo da intolerância vocabular, ou melhor, do nojo cego face a uma qualquer palavra-bloqueio, um termo que imediatamente aniquila a hipótese de uma conversa civilizada.
Quantos debates, a partir do momento em que “religião” ou “socialismo” são invocados, não revertem para acusações e julgamentos temerários, do género “Se Deus existe, porque há guerras e fome?”, ou “Se queres socialsmo, vai p’rá China!”? Este fenómeno, que pode parecer ridículo à partida, é tão velho como a própria capacidade de conversar e, por conseguinte, de discordar. Mas se antes era e podia ser inocentemente ignorado, na idade da comunicação global, das redes sociais, do multiculturalismo e do encurtamento de todas as distâncias, ganha proporções que obrigam a um alerta preocupado. Muitos dos conflitos da atualidade, nacionais ou internacionais, explicam-se por uma incapacidade de diálogo inédita, frequentemente porque uma ou ambas as partes não conseguem ultrapassar dada palavra-bloqueio. Por lhe associarem ideias preconceituosas ou mesmo exageros falsificados, deitam a perder uma série de opções que poderiam advir de maior abertura e limitam-se ao que conhecem e toleram. Pode não parecer, mas conversar e debater no século XXI, não obstante a maior liberdade e facilidade de expressão, não se tornou uma tarefa fácil, e atingir uma conclusão que retire o melhor de todos os lados é, aliás, tão difícil como sempre. O espírito crítico humano gerou mil opiniões, contudo raramente se consegue abrir a mais do que uma ou duas. Para a humanidade evoluir de forma positiva e concertada, vamos ter de resolver a intolerância ideológica que grassa pelo globo, tanto mais que se avizinham desafios gigantescos que requerem cooperação mundial, e frente aos quais não nos podemos perder em guerras de palavras, impotentes para agir rápida e eficazmente.
Todavia, há razão para ter esperança no sucesso comunicativo do ser humano! Isto porque as palavras adquirem um novo folgo no mundo globalizado e digital que nos envolve. O contacto recorrente com outras culturas, ideias e conceitos obrigou-nos a arranjar formas de entendimento variadas, culminando numa linguagem mais ou menos internacional, em expansão, que busca termos e expressões daqui e dali para completar e tornar mais claro o que se pretende dizer. Falo da universalização de termos científicos, da multiplicação dos empréstimos e estrangeirismos, e da valorização do ensino das Línguas. Principalmente, refiro-me a palavras de um certo idioma que se tornaram ícones reconhecíveis em todo o mundo, capazes de fazer o discurso mais inteligível e passar ideias muito próprias. Hoje, é habitual encontrar quem fale “da importância das soft skills” ou, em sentido inverso, confesse: “I felt what the Portuguese call saudade”. É um pequeno e talvez cómico exemplo de que o ser humano tem de e quer aprender a comunicar de forma universal, e que pode ser mais fácil expressar certas coisas numa língua diferente sem, claro, incorrer em prejuízos graves para o património linguístico natal.
Termino esta reflexão, dedicada ao Dia Europeu das Línguas, com um apelo ao leitor para que, se tiver oportunidade, se dedique ao estudo e prática de um idioma estrangeiro. Como tentei explicar, a raça humana precisará de toda a capacidade de compreensão (e alcance ideológico) que conseguir mobilizar para resolver consistentemente os grandes desafios em que já está envolvida. Para mais, o conhecimento de outra língua geralmente implica algum grau de imersão ou contacto intercultural, fomentando diálogos e partilhas essenciais e desenvolvendo a abertura de espírito. No meio da confusão que é o mundo moderno, uma palavra errada, que invoque uma imagem intolerada, pode tornar impossível chegar-se a uma conclusão. Mas usar a palavra certa, mesmo que noutro idioma, pode facilitar tudo. É bom celebrarmos as Línguas, pois dão-nos as palavras que podemos usar para transformar o mundo.
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