DEMOCRACIA SOB PRESSÃO: O CASO PORTUGUÊS
As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
Se há algo que todos nós pensamos conhecer é o pequeno grande conceito chamado democracia. Pensamos saber no que consiste e defendê-la perante qualquer outro modelo parece uma questão no-brainer – a sua superioridade é senso comum. No entanto, muitas das vezes quando utilizamos este conceito esquecemo-nos da multiplicidade de realidades que encapsula e dos diferentes pressupostos que se espera que sejam cumpridos (mesmo que nunca esperemos encontrá-los na sua totalidade e nunca os priorizemos da mesma forma). O que não esquecemos, no entanto, é de avaliar a sua qualidade e eficácia no quotidiano – formamos opiniões sobre o seu desempenho, sobre os pontos a melhorar.
Ao longo deste artigo, sugerimos que se juntem a nós num processo de reavaliação da nossa realidade, onde iremos não só explorar o significado de ‘democracia’, mas também ver como é que esta se concretiza em Portugal (ou no que não se concretiza). Depois, observaremos como esta realidade choca com as expetativas e opiniões da população portuguesa para de seguida identificarmos os seus problemas e propormos reformas concretas para os resolver.
Falando de democracia, podemos começar com a noção clássica de o poder residir nas pessoas (demo+cratos). O conceito surge geralmente associado a outros 6 conceitos centrais: eleitoral, liberal, maioritário, participativo, deliberativo e igualitário. Estes não são suficientes por si só para definir as características de um regime democrático, mas em conjunto oferecem uma compreensão do que atualmente se entende como democracia.
É correto assumir que todos esperamos que a componente eleitoral seja cumprida, isto é, pressupomos a existência de competição entre líderes/grupos (assegurada por regras, procedimentos, liberdades civis, escrutínio judicial e mediático independente), que se apresentam perante a aprovação da população durante o período eleitoral. Quando olhamos para Portugal, percebemos facilmente que esta vertente está garantida. Aliás, as instituições que se dedicam ao estudo destes processos - Freedom House (Ponto B); Polity 5 (conceito de Political Competition); V-Dem - aferem o seu cumprimento.
Mas que melhor forma há de avaliar a qualidade da democracia portuguesa do que com a opinião da população que nele vive?
O apoio à democracia é conceito multidimensional que normalmente se divide em apoio difuso – lealdade dos cidadãos à democracia como ordem política e valor ideal/normativo – e apoio específico – avaliação que é feita do desempenho concreto do regime e das suas principais instituições e atores.
No nosso caso, observa-se o famoso ‘paradoxo democrático’: apesar de a larga maioria dos portugueses apoiar o regime democrático, existem elevados níveis de insatisfação em relação ao seu funcionamento concreto. Desde o início do século, Portugal vem registando dos níveis mais baixos de apoio específico a nível europeu, o que é preocupante devido à hipótese de contágio: a insatisfação continuada e permanente em relação à atuação das instituições pode, a médio/longo prazo, levar os cidadãos a colocar em causa a sua legitimidade, os seus valores e os seus princípios.
Os partidos são os atores políticos que têm os menores níveis de confiança. Os principais partidos portugueses são organizações fechadas e oligárquicas que alimentam as suas clientelas, fornecendo-lhes carreiras políticas e cargos públicos. Tendo em conta a falta de investimento partidário na formação de quadros qualificados, estas práticas prejudicam a qualidade da administração pública. Além disto, são frequentes os escândalos de corrupção na comunicação social - em 2019, mais de 70% dos eleitores acreditava que as práticas de corrupção se encontravam muito ou razoavelmente difundidas na classe política, o que prejudica o apoio específico ao regime.
Neste sentido, seria interessante criar-se um Comitê que avaliasse as nomeações para os cargos de governo e da administração pública. Assim, perceber-se-ia se são qualificadas e se existem conflitos de interesse, o que aumentaria o escrutínio sobre estas decisões daí em diante justificadas publicamente. Para aumentar a credibilidade e competência dos partidos e dos seus quadros poderia também alterar-se a lei do seu financiamento para forçá-los a investir na formação de quadros e em gabinetes de estudo.
A nível parlamentar, há um problema de separação de poderes dada a sua subalternização ao executivo. Quando o(s) partido(s) de governo goza(m) de maioria parlamentar, o que é bastante comum, o governo torna-se no principal legislador e a oposição vê o seu poder de controlo limitado à crítica e desgaste na opinião pública. Além disto, os partidos do arco da governação estão constantemente a competir por motivos eleitorais, não conseguindo cooperar em matérias fundamentais para o interesse nacional que exigem políticas estáveis no médio-longo prazo. Assim, adiam-se as reformas estruturais e prejudica-se a eficácia das políticas, que são constantemente alteradas consoante os ciclos eleitorais, o que frustra o eleitorado.
A resolução destes problemas poderá passar por aumentar os poderes do Parlamento através do alargamento das matérias em que tem poder de codecisão com o governo, submetendo-as a aprovação por maioria qualificada. Isto obrigaria o executivo a trazer mais medidas ao Parlamento e a formar compromissos de longo prazo com outros partidos sobre reformas essenciais e grandes investimentos públicos.
A ‘governamentalização do Parlamento’ é resultado de um sistema eleitoral absolutamente desproporcional. A existência de círculos eleitorais muito reduzidos dificulta a eleição de deputados de pequenos partidos, o que favorece naturalmente os dois maiores, sendo relativamente fácil formar maiorias. O sistema eleitoral português constrange a representatividade dos mandatos em relação ao voto popular, cria esta dinâmica bipartidária, reduzindo a oferta política a dois partidos pouco diferenciados, assim como facilita abusos de poder por parte dos partidos instalados. É crucial então reformá-lo, agrupando os círculos eleitorais mais pequenos para garantir representatividade.
Além disto, o sistema eleitoral é caraterizado por listas fechadas e bloqueadas, o que é raro na União Europeia. A composição das listas, logo do Parlamento, está a cargo dos partidos: o eleitor não tem o poder de escolher quem o representa. Isto efetivamente afasta os cidadãos da política, que muitas vezes não conhecem os eleitos nem se sentem representados, além de criar um problema de accountability – a responsabilização não é perante os aos eleitores, mas sim em relação ao partido que os escolhe. Neste sentido, é privilegiada a lealdade ao líder do partido e não o mérito do candidato, o que prejudica a qualidade da atividade parlamentar. É, portanto, fundamental dar a capacidade ao eleitor de escolher quem o representa, mesmo que parcialmente. Já existe debate avançado na sociedade civil a este respeito e, inclusivamente, iniciativas concretas.
Uma das formas de aumentar a legitimidade popular do regime é aumentar o número de processos institucionais que atuem como mecanismos de accountabilty vertical. Isto significa acrescentar ao processo habitual e mínimo democrático - o voto em eleições - outros mecanismos de democracia direta, que dizem respeito à componente participativa que existente no conceito de democracia. Mais concretamente, falamos de chamar mais vezes a população às decisões, aumentando, por exemplo, a frequência de referendos. Devem também reforçar-se os mecanismos dos orçamentos participativos e facilitar as condições para iniciativas legislativas dos cidadãos, que ainda são muito exigentes.
A democracia está longe de ser um dado adquirido. Pelo mundo fora são muitos os exemplos de recessões democráticas, o que torna, mais do que nunca, necessário refletir sobre o estado da nossa democracia se a quisermos preservar. Apesar de os cidadãos portugueses apoiarem largamente as instituições democráticas, estão persistentemente e cada vez mais insatisfeitos com o seu funcionamento, o que facilmente pode resvalar na quebra do apoio ao regime. A abstenção avassaladora e o crescimento de partidos antissistema são definitivamente maus sinais. Por estas razões, a democracia portuguesa deve responder às exigências e expetativas dos cidadãos, reformando-se e melhorando a sua performance para concretizar em pleno o Portugal Democrático pelo qual lutamos.
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