Trabalho: Utopia ou Distopia?


Trabalho: Utopia ou Distopia?

 

“A maior parte das pessoas foi educada para o trabalho. Todas as nossas escolas só educam para isso. Então quando a pessoa sente que já não está na idade do trabalho começa a não ter nada que fazer e o tempo livre cai sobre ela, esmaga-a. Mas se a pessoa tivesse sido educada, ou por natureza fosse sobretudo apaixonado pela vida, nunca se sentiria velho para coisa nenhuma. Pode sentir-se doente, pode sentir-se mais fraco, pode não correr tanto como corria quando era novo (...), mas a paixão pela vida o sustenta vivo.” – Agostinho da Silva e a velhice

 


A Utopia


A utopia, ao longo da história, tornou-se um conceito amplamente debatido. Elogiada por uns, criticada por muitos outros, a utopia sempre cumpriu o seu papel crítico: o de negar uma realidade imediata incompatível com a emancipação humana e anunciar uma nova ordem fundamentada num projeto alternativo ainda inexistente. Um projeto que fomentasse um mundo onde a coexistência fosse coletivamente pacífica, “o lugar que não existe”; “o lugar do melhor”; ou simplesmente, “o não lugar”. 

Quem em criança nunca desejou ser médico, professor ou bombeiro, movido apenas pelo fascínio da profissão? Acreditávamos que o “resto” – a casa, a comida, a saúde e a educação estariam garantidas. O sonho era um e o sobrante uma despreocupação. Mas até que ponto não teríamos razão? Não deveria o trabalho ser uma expressão da vontade do ser humano em contribuir para a sociedade? Neste sentido, todos deveríamos seguir a nossa vocação e o que faltasse viria por acréscimo. 

E no pensamento infantil reside uma visão idealizada, romantizada e, inerentemente coletiva, pela qual muitos continuam a lutar: a dignidade. Redução e flexibilidade das jornadas de trabalho, uma remuneração justa e adequada para viver confortavelmente, com segurança, estabilidade e rendimento suficientes para realizar os nossos desejos e sonhos pessoais.

Tal qual a “ecologia sem luta de classes é jardinagem”, como afirmava o brasileiro Chico César, também o trabalho sem dignidade coletiva e redistribuição é exploração. Infelizmente, enquanto sociedade, absorvemos o mito dos self-made men, cada vez mais amplificado pelas redes sociais, sem perceber que este conceito não promove a realização individual, mas sim a divisão e o alargamento do fosso social. As exceções que chegam ao topo da pirâmide, inevitavelmente esmagam a maioria. É o sistema capitalista que se impõe, que liberta poucos e oprime muitos. ​​Por sua vez, o trabalho digno de todos é o que verdadeiramente liberta o ser humano – sendo ele, o mais próximo que podemos de alcançar da utopia.


 

A Evolução do Trabalho ao Longo dos Séculos


A Revolução Industrial abalou profundamente os alicerces aparentemente inamovíveis, protecionistas e sólidos das estruturas mercantilistas do Antigo Regime. Se anteriormente os trabalhadores se confinavam às suas pequenas oficinas e escassos recursos, a partir do século XVIII, as formas de produção e as relações laborais alteraram-se drasticamente, substituindo o trabalho artesanal pela produção em larga escala e impulsionando o êxodo rural. Simultaneamente, a precariedade não só laboral como social disparou – a pobreza, prostituição, fome e doença proliferaram nos bairros de operários nas periferias, dando origem aos primeiros movimentos reivindicativos, como os ludistas e as Trade Unions, que lutaram por melhores condições laborais.  

No século XX, após as guerras mundiais, os "Trinta Gloriosos” (1945-1975) fortaleceram os direitos dos trabalhadores. No entanto, crises económicas, como o colapso dos acordos de Bretton Woods e a recessão dos anos 1970, levaram à ascensão do monetarismo e do neoliberalismo, resultando na desregulação do trabalho e na erosão das conquistas laborais. As políticas de Reagan e Thatcher aceleraram esse processo, deixando um rasto de destruição cujos efeitos são ainda mais visíveis na atualidade.

 


E quais as novas regras e exigências do trabalho em 2025?


Entrar no mercado de trabalho é sempre um desafio, mas em 2025 esse processo torna-se ainda mais complexo num cenário cada vez mais digital, competitivo e especializado. A evolução do mercado reflete mudanças significativas, desde a forma como trabalhamos até aos critérios de recrutamento adotados pelas empresas.  



O Declínio do DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão)


Um fenómeno mundial em destaque é o declínio das políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI). Se antes muitas empresas investiam fortemente nessas iniciativas – através de quotas, licenças de maternidade e paternidade, Códigos de Conduta Antidescriminação – agora várias começam a descartá-las, argumentando que o mérito deve ser o único critério de contratação, dificultando as minorias, as classes desfavorecidas e as mulheres no ingresso no mercado de trabalho digno. O movimento teve início entre pequenas start-ups, mas rapidamente se espalhou para grandes corporações, como McDonald 's, Walmart, Boeing, Amazon e, mais recentemente, a Meta. Embora essa retração tenha sido impulsionada por discursos políticos atuais e pela crescente normalização de um ceticismo em relação ao DEI, a diminuição das vagas ligadas a essas políticas já vinha sendo registada desde 2022 nos Estados Unidos. Em contrapartida, em Portugal, observa-se uma tendência inversa, ou seja, um crescimento contínuo das políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão.



Crescimento dos Freelancers (ou o “trabalhador autónomo”)


Rapidamente abandonando a sua conotação de carreira alternativa, o trabalho autónomo tornou-se um modelo dominante na apelidada “sharing economy, o sistema económico que instiga a partilha de bens e serviços, privilegiando o seu acesso e não a sua posse. Com o avanço da inteligência artificial e a crescente substituição de postos de trabalho fixos por contratos temporários, a precarização do trabalho intensifica-se. A estabilidade torna-se um privilégio, e a incerteza uma condição comum para milhões de profissionais. 



A Especialização do Trabalho


A especialização no mercado de trabalho tornou-se um pilar central da economia e da sociedade, mas também um fator de aprofundamento das desigualdades. À medida que a economia global se torna mais complexa, as empresas e organizações precisam de trabalhadores altamente qualificados em áreas específicas. No entanto, em países onde os sistemas educativos apresentam lacunas significativas e que não garantem uma aprendizagem inclusiva para todos, jovens com dificuldades financeiras são vedados à entrada no mercado de trabalho altamente especializado, dada a falta de escolaridade ou meios de suportarem o ensino superior, perpetuando o domínio das elites. 



A Revolução das Profissões e das Competências


As mudanças disruptivas nos modelos de negócio terão igualmente um profundo impacto no panorama do emprego nos próximos anos. O impacto das mudanças tecnológicas e dos novos modelos de negócio é avassalador: muitas das profissões mais procuradas hoje não existiam há dez ou mesmo cinco anos. Segundo a CEPAL (Comissão Económicapara a América Latina e o Caribe), 65% das crianças que entram agora na escola primária acabarão por trabalhar em empregos que ainda nem foram inventados. Num mercado de trabalho em constante transformação, antecipar e preparar-se para novas competências é essencial, tanto para empresas como para governos e indivíduos.

Neste sentido, o recrutamento baseado em diplomas e anos de experiência tem sido progressivamente abandonado, dando lugar às competências tangíveis – as soft skills. Um estudo da ADP Research revelou que 94% das empresas que adotaram este modelo obtiveram melhores resultados do que com o recrutamento tradicional. Os Estados e as empresas estão a reestruturar-se para operar com base em competências, que precisam de ser constantemente adquiridas, atualizadas e renovadas. Consequentemente, é de mencionar o papel fulcral que a adaptabilidade tem vindo a conquistar no mercado de trabalho, outrora uma soft skill secundária, hoje é uma competência essencial e incontornável. Em 2025, é crucial estar confortável com a incerteza e a mudança, aprender continuamente e experimentar novas abordagens. 

 


A Distopia


Numa fusão entre 1984, de Orwell, Admirável Mundo Novo, de Huxley e Fahrenheit 451, Bradbury, a humanidade do século XXI absorve a ficção e corre alegremente para o abismo, a catástrofe. Abraça a sua própria invenção, a distopia.

Avançamos a um ritmo frenético, confundindo o impulso da tecnologia e o consumismo, com o verdadeiro progresso humano. A promessa de um futuro mais inclusivo e equilibrado dá lugar a um modelo de sociedade cada vez mais exclusivo, em que a precariedade do trabalho se une com a alienação digital. A flexibilização prometida como sinónimo de liberdade revela-se um eufemismo para contratos voláteis, salários baixos e jornadas exaustivas, tornando a estabilidade e a realização pessoal num privilégio restrito a poucos, enquanto a maioria precisa de se reinventar constantemente para não ser descartada, intensificando-se a sua atividade laboral (e a tradicional tríade: ansiedade, esgotamento nervoso e depressão). A meritocracia é exaltada, mesmo quando a desigualdade de oportunidades se agrava. 

Assim sendo, é igualmente relevante referir as problemáticas da substituição crescente da autonomia humana e da erosão do pensamento crítico – consequências diretas da Inteligência Artificial – cujos algoritmos moldam opiniões e comportamentos, provocando uma derrocada na capacidade de questionamento, nos moldes do pensamento livre e, evidentemente, na democracia. 

Numa distopia previamente anunciada, agrava-se a urgência climática e a cultura do desinteresse, intensificando ainda mais o estádio do capitalismo. 

 


Conclusão 


A utopia e a distopia do trabalho entrelaçam-se na sociedade contemporânea, refletindo as contradições de um sistema que oscila entre a emancipação e a exploração. Se, por um lado, o progresso tecnológico promete aliviar a carga laboral e proporcionar mais liberdade, por outro, a crescente precarização, a exaustão emocional e a erosão dos direitos trabalhistas pintam um cenário desolador. O mercado de trabalho de 2025 não é somente um campo de desafios técnicos, mas um espelho das desigualdades estruturais que se aprofundam sob o peso do neoliberalismo.

A distopia não é um destino inevitável, mas sim uma escolha coletiva. A defesa da dignidade no trabalho, da redistribuição da riqueza e da sustentabilidade social exige não só consciência, mas ação. Como a história demonstra, foram os movimentos reivindicativos que moldaram os direitos que hoje tomamos como garantidos. Se a escola ensina a competir e o mercado valoriza a obediência em detrimento do pensamento crítico, cabe a cada um resistir, questionar e transformar.

No fim, a luta pelo trabalho digno é a luta pela própria humanidade. Seja na recusa da apatia ou na construção de alternativas, é na ação coletiva que se desenha um futuro que não seja apenas uma distopia anunciada, mas a possibilidade real de um mundo mais justo. 

Homo Sapiens “produz a sua própria existência social”, como dizia Karl Marx – cabe-nos, então, traçar o nosso futuro. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia:

Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). (2019). Com evolução tecnológica, 65% das crianças terão empregos que ainda não existem, diz CEPAL. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://brasil.un.org/pt-br/80575-com-evolução-tecnológica-65-das-crianças-terão-empregos-que-ainda-não-existem-diz-cepal

Ensina RTP. (s.d.). A Frente Popular em França e Espanha. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://ensina.rtp.pt/explicador/a-frente-popular-em-franca-e-espanha/

Ensina RTP. (s.d.). As mudanças na produção e nas relações de trabalho. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://ensina.rtp.pt/explicador/as-mudancas-na-producao-e-nas-relacoes-de-trabalho-h69/

Esquerda.net. (s.d.). Produção, trabalho e crise ecológica. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://www.esquerda.net/dossier/producao-trabalho-e-crise-ecologica/94130

Expresso. (2024, 1 de julho). O que nos dizem os mais recentes dados sobre o mercado de trabalho em Portugal?Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://expresso.pt/podcasts/economia-dia-a-dia/2024-07-01-o-que-nos-dizem-os-mais-recentes-dados-sobre-o-mercado-de-trabalho-em-portugal--8f2dd5f6

Fundação Perseu Abramo. (2021). Enterrando o legado de Reagan e Thatcher. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://fpabramo.org.br/focusbrasil/2021/04/19/enterrando-o-legado-de-reagan-e-thatcher/

História do Mundo. (s.d.). Ludismo. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/ludismo.htm

Instituto Nacional de Estatística. (s.d.). Destaques. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&&DESTAQUEStema=55574

Jorge, H. (2021, 21 de julho). O que é ser velho. Transições. Disponível em https://www.transicoes.pt/l/o-que-e-ser-velho/

Jovens Repórteres para o Ambiente. (s.d.). O impacto da inteligência artificial no ambiente. Recuperado em 30 de março de 2025, de https://jra.abaae.pt/plataforma/artigo/o-impacto-da-inteligencia-artificial-no-ambiente/

Público. (2021, 9 de março). Trabalho realmente humano: distopia digital e democracia. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://www.publico.pt/2021/03/09/opiniao/noticia/trabalho-realmente-humano-distopia-digital-democracia-1953574

Público. (2022, 9 de janeiro). Shoshana Zuboff: "O Facebook mata". Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://www.publico.pt/2022/01/09/sociedade/entrevista/shoshana-zuboff-facebook-mata-1990958

Público. (2022, 12 de julho). Vivemos em plena distopia digital. Será que damos conta disso? Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://www.publico.pt/2022/07/12/p3/fotogaleria/vivemos-plena-distopia-digital-sera-damos-conta-disso-408412

Público. (2025, 9 de janeiro). IA ao lado de cada um a todo o tempo. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://www.publico.pt/2025/01/09/tecnologia/noticia/ia-lado-tempo-2118207

World Economic Forum. (2020). The Future of Jobs Report 2020. Recuperado em 30 de março de 2025, dehttps://www3.weforum.org/docs/WEF_Future_of_Jobs.pdf 

Comentários