Artigo: A Reorganização Administrativa de 2012

 

A Reorganização Administrativa de 2012

Em Portugal há um debate histórico sobre a descentralização e a centralização do poder, a autonomização do poder local e a regionalização, sendo reconhecidos os excessos burocráticos do Estado Central e a necessidade de otimização da administração local.

Um capítulo importante deste debate histórico surgiu com a Reorganização Administrativa de 2012, também conhecida como a “Reorganização Administrativa do Território de Freguesias” ou “Lei Relvas”, que representou uma reforma estrutural administrativa portuguesa, num contexto de austeridade económica com várias imposições da TROIKA no país.

Esta reforma tinha como objetivo central a redução do número de freguesias de modo a racionalizar o funcionamento e os fundos fornecidos aos órgãos autárquicos, tendo sido descrita pelo ex-ministro Miguel Relvas como “sem paralelo”.

Tendo isto em conta, o presente artigo explora as motivações que inspiraram a reorganização, bem como as consequências, tanto dentro das comunidades locais como a nível nacional, que acabaram por levar à reorganização de 2021.

        A Reorganização Administrativa de 2012 surge num período de grandes dificuldades económicas no contexto da Crise da Dívida Pública na Zona Euro, tendo sido implementados pelo Estado português medidas de austeridade para reduzir gastos públicos e combater a crise.

Uma destas medidas, imposta pela TROIKA, surgiu e consolidou-se com a reorganização da divisão administrativa portuguesa. Uma vez que Portugal tinha um número de freguesias que era considerado demasiado elevado, argumentava-se que o financiamento para todas estas era insustentável.

Deste modo, foi aprovada a Lei n.º 22/2012 de 30 de maio, cujos objetivos consistiam no desenvolvimento de uma maior coesão territorial, o desenvolvimento local, alcançar-se uma maior eficácia dos serviços através de uma maior intervenção por parte do Estado e das próprias freguesias, bem como a promoção de maiores ganhos de escala.

Esta reforma seguiu uma série de princípios, definidas no artigo 3.º, tais como a preservação da identidade histórica, cultural e social das comunidades locais, o equilíbrio demográfico entre freguesias, assim como a participação das autarquias locais para a definição de toda a reorganização.

Para esta reforma administrativa estabeleceu-se a Unidade Técnica para a Reorganização (UTRAT), tendo um maior teor prático. Esta tinha o objetivo de refletir sobre como a Reorganização se deveria suceder e quais fatores a considerar para se fundirem freguesias, nomeadamente a níveis demográficos, existindo uma preocupação em levar me consideração o isolamento populacional em relação às sedes de freguesias mais próximas e o equilíbrio demográfico das freguesias em cada município, bem como fatores históricos.

Apesar de grande apoio prestado por parte do governo de Passos Coelho/Paulo Portas, a reorganização administrativa foi alvo de grande oposição, nomeadamente do Congresso da ANAFRE - encontro nacional de freguesias e autarquias locais - que estabeleceu veemente a sua objeção à reforma por considerar não se adequar com a realidade social portuguesa, nem verificar qualquer benefício para as populações ou para a organização do poder local.

Face à impossibilidade de se alcançar um consenso, o governo optou por uma abordagem “top down”, ignorando as promessas de uma reorganização baseada na análise cuidadosa das diversas freguesias, organizando-as consoante critérios estatísticos. Com isto, extinguiram-se 1 168 freguesias, sendo efetuadas 884 agregações, no que se traduziu numa redução de 4 055 para 2 882 freguesias. De notar que as maiores diferenças se verificam na Grande Lisboa, Península de Setúbal, região do Cávado e Área Metropolitana do Porto.

Figura 1: Percentagem de freguesias mantidas, por NUTS III 
(fonte:Henriques, C., Domingues, A., Teixeira, J. A., & Esteves, M. A. P. P. (2018))


A níveis práticos, temos o exemplo da atual União das Freguesias de Póvoa de Santo Adrião e Olival Basto no concelho de Odivelas, formada pela agregação da Póvoa de Santo Adrião, a mais antiga do concelho, e Olival Basto. Deu-se aqui a fusão devido à proximidade entre ambas as freguesias e semelhanças históricas.

As consequências da agregação nesta União de Freguesia incluem a redução de órgãos de governo local, agora existe apenas uma junta de freguesia, localizada na que antes era a freguesia de Póvoa de Santo Adrião; a consolidação de recursos e serviços; e principalmente ajustes orçamentais ao unificar os orçamentos das duas antigas freguesias numa só. 

Apesar disto, há quem defenda que o processo não tenha sido bem-sucedido. O então presidente da união de freguesias, Rogério Breia (autarca eleito pelo PS), contestou a fusão de ambas as localidades, referindo que esta tinha sido feita apressadamente “a régua e esquadro” e que os supostos aumentos orçamentais prometidos nunca chegaram, verificando na verdade uma quebra de orçamento devido aos cortes impostos pela TROIKA. Para além disso, num artigo de 2019, o Olhares de Lisboa descreve a União de Freguesias como “parada no tempo”, cujo as entrevistas sugerem que pouco progresso foi realmente alcançado após a fusão, referindo-se à falta de oportunidade de construção de infraestruturas de apoio à população. Declara-se também a dificuldade em aceder aos novos serviços que se centralizaram numa das antigas freguesias, tornando-se inacessíveis para a maioria da população.

A reorganização do território de freguesias foi principalmente defendida pelo governo de coligação PSD/CDS-PP chefiado por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, mas foi fortemente criticado tanto pelos partidos da oposição de esquerda, quanto pelas entidades locais, autarquias e civis.

A reorganização administrativa foi legitimada pelos seus defensores como uma forma de aumentar a “eficácia na prestação de serviço às populações” e ganhos em escala, que intrinsecamente se preocupa com a manutenção das identidades culturais e históricas regionais e que pretende centralizar o poder local aproximando-o do poder central.

O Partido Socialista, embora tenha manifestado interesse e apoio à reorganização, manteve-se oposto ao processo, não concordando com a extinção de freguesias, nem com os critérios de organização territorial, explicitando que “O País não é Lisboa” e que as juntas de freguesias se tinham tornado, para muitos, fulcral na subsistência e ajuda económica.

Por outro lado, observou-se um grande descontentamento civil, traduzido em protestos como a “Manifestação Cultural” de cerca de meio milhão de pessoas em Odivelas que protestaram contra a eliminação de três das sete freguesias da região, argumentando que a transição tinha sido realizada sem qualquer tipo de estudo ou consideração pela cultura e história local e pela população idosa.

Os Comunistas referiram também a falta de consideração para com as populações locais ao afastar cada vez mais as sedes de freguesia de setores significativos da população, justificando que os “grandes ganhos de eficiência em escala” iriam na verdade se traduzir em “menos proximidade, menos recursos e menor capacidade de resolver os problemas da população”, pois se antes o orçamento ia para duas freguesias, depois da agregação, apenas a freguesia agregadora irá receber os benefícios económicos.

Novamente, a Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE) também considerou que a reorganização das freguesias não se adequa à realidade social portuguesa, não vendo qualquer benefício para as populações e para a organização do poder local.

A Lei Relvas se por um lado acabou por enfraquecer a representação local ao reduzir o número de eleitos em assembleias de freguesia e assembleias municipais, acabou por aumentar as competências dos órgãos locais e alterou o funcionamento da gestão municipal. Ainda, teve efeitos imediatos na vida dos eleitores portugueses, especialmente na questão do recenseamento, tendo o número de eleitor de vários cidadãos sido alterado (questão que deixou de ser relevante em 2018 quando se adotou o recenseamento automático).

Não deixa de ser pertinente referir, ainda, que esta reforma abriu um precedente negativo e antidemocrático, uma vez que o poder central aplicou alterações profundas à configuração das freguesias sem consultar órgãos deliberativos e populações locais, o que pode ser visto como um ataque à autonomização do Poder Local.

Face a todas as críticas apresentadas e ao descontentamento popular com a Reorganização, em 2021, o Parlamento português aprovou, (com os votos a favor do PS, PSD, PAN e IL) um regime transitório para a modificação e extinção destas Uniões de Freguesias. Com esta nova lei, que entrou em vigor em 2022, até 300 Uniões de freguesia podem começar o processo de desagregação caso tiverem pelo menos um funcionário com vínculo de emprego público e um edifício sede, demonstrem viabilidade económico-financeira, e se tiverem mais de 750 eleitores (no litoral) ou um mínimo de 250 eleitores (no interior).

À esquerda, partidos como o PCP, opuseram-se à nova lei por acreditarem que os critérios que condicionam a reposição de freguesias eram demasiado restritos, pelo que não se traduziria uma verdadeira reversão da reforma de 2012. Apesar disto, mais de 150 Uniões de Freguesias de todos os distritos apresentaram pedidos para se desunirem. Desde o Algarve até ao Minho, todos os meses surgem notícias de Freguesias que foram forçadas a unir-se, estão prontos a apresentar os seus casos ao poder central.

Com isto conclui-se que, apesar de alguns efeitos positivos no aumento das competências dos órgãos administrativos locais, a reorganização administrativa de 2012 contribuiu para aumentar a desigualdade ao acesso de certos serviços pelas populações, como se viu no caso da União de Freguesias da Póvoa de Santo Adrião e Olival de Basto. Também se conclui que a reforma não foi um passo significativo na redução da burocratização e otimização administrativa, assim como abriu um precedente ao impor-se a vontade do poder central aos órgãos locais. Relativamente à nova reforma administrativa, ainda é cedo para se tirarem conclusões não tendo nenhuma União de Freguesias concluído o processo de desagregação aquando este artigo foi escrito. 














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