A descolonização aos olhos de abril
António Rochinha
Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais, 2º Ano - NOVA FCSH
As opiniões expostas neste artigo vinculam exclusivamente os seus autores.
A descolonização aos olhos de abril
No passado dia 23 de março de 2022, igualámos o tempo vivido em democracia com os 17,499 dias vividos sob ditadura, dando, assim, um sabor especial às comemorações do 25 de Abril numa aparente vitória para com o nosso passado ditatorial. No entanto, é de ressalvar que esta vitória não está totalmente consolidada, principalmente no que diz respeito ao passado colonial. De acordo com o historiador António Costa Pinto (2015), «(…) nas “políticas de memória contemporâneas" houve um “ajuste de contas” com o passado ditatorial, mas não com o passado colonial, sobrevivendo no discurso político e nas instituições um difuso excecionalismo lusotropicalista».
A Deturpação dos pressupostos lusotropicalistas de Gustavo Freyre
No pós-II Guerra Mundial, juntaram-se um conjunto de condições favoráveis para uma mudança de perspetiva do Estado Novo quanto às teses defendidas pelo brasileiro Gustavo Freyre. O contexto internacional de condenação ao colonialismo e o aumento de pressões por parte da ONU e dos EUA, permitiu ao regime salazarista fazer uso do luso-tropicalismo e do prestígio internacional de Gustavo Freyre, de forma a legitimar a presença portuguesa nos territórios em África. Neste sentido, o Estado Novo aproveitou-se das premissas nacionalistas da teoria de Freyre, esquecendo de forma propositada todos os aspetos “desnacionalizadores” (Castelo 1999), resultando numa difusão generalizada de que o colonialismo português era diferente, sendo inerentemente “tolerante”, “humano”, “fraterno” e “cristão” – “a maneira portuguesa de olhar o mundo” (Castelo 1999).
O 25 de abril e o processo de descolonização
O golpe de abril proporcionou todas as condições para meter um fim definitivo na Guerra colonial e, consequentemente, acelerar o processo de descolonização do último império colonial europeu. No entanto, o programa da MFA carecia de medidas concretas para a descolonização. Spínola, no discurso de 26 de abril, apenas enfatizara a importância de alcançar uma paz, de modo a garantir “a sobrevivência da pátria como nação soberana no seu todo pluricontinental” (1974). Só na tomada de posse de Spínola, a 16 de maio, foi possível prever os meses que se seguiam. Spínola, apesar de se mostrar favorável à autodeterminação dos povos africanos, mostrara-se intransigente a “negociações entre fações”, sem que existissem primeiro eleições livres, segundo “as regras das democracias” (Ramos 2015).
Todavia, as exigências de Spínola rapidamente caíram por terra face à não-colaboração dos movimentos libertários e, em menor grau, devido ao panorama internacional vivido na época. Estamos a falar de uma altura em que as potências ocidentais estavam em declínio, especialmente os EUA, fatigados pela inflação, pelas polémicas do Watergate e pelas crises do Chile e do Vietname (Ramos 2015). Nesta lógica, o apoio ocidental nunca chegou a Spínola, tornando-se, assim, inevitável os processos de independência nas principais zonas de conflito que viriam a traçar os seus primeiros passos – a 26 de agosto, em Argel, é acordada a entrega da Guiné ao PAIGC e a 9 de setembro, em Lusaca, Moçambique é entregue à FRELIMO. Restando, por último, o caso angolano, no qual Spínola procurou outro tipo de soluções, embora sem qualquer fruto. A independência angolana viria a ser consagrada no dia 11 de novembro de 1975, antes de qualquer tipo de eleição entre os três principais partidos – UNITA, MPLA e o UPAFNLA (Ramos 2015). Quanto a São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, viriam a conquistar a sua total independência, respetivamente, no dia 30 de junho de 1975 e no dia 12 de julho de 1975, após a realização de eleições unipartidárias (Ramos 2015). Numa lógica diferente, ocorreram os processos de independência de Timor e de integração de Macau na República Popular da China, fortemente influenciados por fatores de cariz internacional, que acabaram por apenas conhecer a sua solução no início do século XXI.
Por sua vez, os partidos do governo português haviam-se dividido em três blocos quanto ao processo de descolonização: a esquerda, que se mostrava favorável aos apelos dos movimentos independentistas armados, de um trespasse imediato do poder; o bloco central, como o PPD e o CDS, que esperavam a realização de eleições livres nas ex-colónias; e, por fim, o bloco mais à direita, no qual era defendido uma postura “federalista” (Ramos 2015). Estes últimos rapidamente viram as suas esperanças desvanecerem-se com a ambição portuguesa de integração na CEE, anulando com eficácia as bolsas discursivas do “fim de Portugal” (Pinto 2015). Com isto, Portugal deixava um legado pós-colonial caraterizado por uma “interessante sincronia”: “a criação de novos Estados africanos com uma assinalável semelhança de sistemas políticos e com uma identidade mútua e inserção próxima no sistema internacional” (Pinto 2015).
A “descolonização” da atualidade
Nos dias de hoje ainda é possível verificar evidências do luso-tropicalismo e da excecionalidade portuguesa no atual discurso político e cultural. De acordo com Miguel Vale de Almeida, no 25 de abril não houve um “processo de verdade e reconciliação”, fomos assistindo a consequentes governos que acabavam por defender a ideia de que “tivemos um colonialismo universalista e de contacto entre culturas” (Almeida 2017). E, com isto, esta mesma componente colonialista permitiu a criação de uma “ideia de lusofonia”, institucionalizada na “criação formal de uma comunidade lusófona com propósitos culturais, económicos e de cooperação em matéria de política externa” (Castelo 1999).
Em suma, podemos celebrar orgulhosamente a vitória da nossa democracia, mas ao mesmo
tempo existe um certo sabor agridoce quando tocamos no nosso passado colonial. Enquanto uma visão mítica da identidade cultural portuguesa for perpetuada no seio da sociedade portuguesa, continuaremos a viver assombrados pelos fantasmas do colonialismo.
Bibliografia
Almeida, Miguel Vale de, entrevista de Joana Gorjão Henriques. Nem o 25 de Abril derrubou o mito do bom colonizador Público. 23 de Setembro de 2017.
Castelo, Claúdia. “O MODO PORTUGUÊS DE ESTAR NO MUNDO. O LUSO-TROPICALISMO E A
IDEOLOGIA COLONIAL PORTUGUESA (1933-1961).” Em MUNDO CONTINUARÁ A
GIRAR, de Henrique Barreto Nunes e José Viriato Capela, 111-116. Conselho Cultural da Universidade do Minho, 1999.
Henriques, Joana Gorjão. “Nem o 25 de Abril derrubou o mito do bom colonizado.” Público, 2017.
Pinto, Anónio Costa. “O fim do império colonial português.” Público, Janeiro 2015.
Ramos, Rui. A Revolução de 25 de Abril e o PREC (1974-1976). Vol. VIII, cap. X em História de Portugal, de Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, 713-721. Lisboa: A esfera dos livros, 2015.
Spínola, António de. “PROCLAMAÇÃO AO PAÍS LIDA POR SPÍNOLA.” Centro de Doumentação - 25 de Abril, 26 de Abril de 1974.
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